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Novo Benfica

Novo Benfica

06
Dez08

Mais que um clube

Pedro Fonseca

Do Barcelona, dizem os catalães, que é “més que un club” – mais que um clube. Bandeira de uma região, a Catalunha, o Barcelona sempre foi uma espécie de braço armado da luta política contra o centralismo de Madrid. Orgulho dos catalães, em oposição ao arqui-rival e inimigo Real Madrid. Um mundo de cultura, de vivências sociais e políticas, separam estes dois emblemas.

 

É certo que o Barça apenas tem 19 títulos de campeão, contra os 31 do Real Madrid, e que só em 1992 conseguiu ser pela primeira vez campeão europeu, depois de ter tido nas suas fileiras jogadores como Puskas, Czibor, Cruyff, Maradona, Lineker, Romário, Krankl. Mas para os catalães é “més que un club”.
Circula uma tese que defende que o Benfica, não fossem os títulos de campeão europeu, em 61 e 62, não fosse Eusébio, não fossem os 31 campeonatos, as taças de Portugal, as inúmeras vitórias europeias, era como o … Leixões.
Sem o menor desrespeito pelo Leixões, antes pelo contrário, clube de grandes tradições , ouso discordar desta tese. E digo ouso porque de uma ousadia se trata, reconheço. Defender que o Benfica não é um clube de futebol, “core business”, como agora se diz, da sua actividade e principal razão da sua existência, é uma grande ousadia. Loucura? Talvez.
Vou tentar explicar porque defendo que o Benfica é “més que un club”. Não são as razões políticas, como as que servem de argamassa emocional no Barcelona, ou religiosas como no Celtic ou Rangers, que o explicam, mas o facto de como nenhum outro clube em Portugal, nem no Mundo, ter sabido ao mesmo tempo conciliar uma ideia do “ser português” com uma vocação universalista.
O Benfica foi, é e será sempre essa síntese, essa ponte, essa expressão identitária. Português, como nenhum outro, porque assumiu desde sempre a sua condição de “clube do povo”, antes, muito antes, das vitórias europeias e de Eusébio, porque não nasceu em berço de ouro, porque foi raio de luz, foi generoso, foi democrático, foi vermelho, foi simples, num Portugal que era sombra, era orgulhosamente só, era ditadura, era negro, era falso. Nunca se deixou “amarrar” nem submeter a nenhum poder, fosse ele político, social ou económico.
Um dia chamaram a esse ideal “mística”, uma palavra sem tradução, como saudade. Cosme Damião, fundador do clube, foi seu atleta, jogador, treinador. Sempre recusou ser presidente ou ter qualquer cargo directivo. A sua filosofia de vida, a sua generosidade, o seu humanismo, a sua alma, formatou o Benfica. É isto a Mística.
José Maria Nicolau, os mais novos não devem sequer saber quem foi, mas o Benfica, de sempre, está inteiro neste nome com três palavras, como Eusébio da Silva Ferreira ou Joaquim Ferreira Bogalho, ou Guilherme Espírito Santo.
Nicolau foi um dos maiores ciclistas portugueses e o maior do seu tempo, na década de 30. Ganhou duas Voltas a Portugal, em 31 e 34, mas pouca gente o sabe e nem sequer é por isso que é um nome imortal para os benfiquistas.
Passa despercebido a muitos, mas o Benfica tem no seu emblema uma roda de uma bicicleta, o primeiro “desporto do povo”. Em cima da bicicleta Nicolau levou a camisola vermelha do Benfica a um país inteiro que o idolatrava nas margens das estradas poeirentas, velhas, esburacadas.
Não foram as vitórias que o colocaram no coração do povo, foi a coragem, a determinação, a generosidade, a alma. A mística. Uma forma muito própria de ser português, mais português com a camisola do Benfica vestida.
Anos mais tarde, na década de 40, Joaquim Ferreira Bogalho, o primeiro “presidente do Estádio”, resolveu aplicar uma pena severa a um jogador. Esse episódio fez história e ainda hoje é recordado.
Félix era considerado o melhor defesa-central da Europa e, para muitos, o melhor defesa-central de sempre do Benfica. Depois de uma derrota em Setúbal, chegou aos ouvidos de Joaquim Ferreira Bogalho que Félix, irritado, tinha pisado a camisola do Benfica após a ter atirado para o chão no balneário. Bogalho expulsou Félix do Benfica. Quantas vitórias, quantos campeonatos não ficaram por ganhar em virtude desta decisão? Mas quem a ousa contestar?
Principal impulsionador da construção do Estádio da Luz, na década de 50, Joaquim Ferreira Bogalho foi o líder de uma gesta histórica. Sem dinheiro, sem infraestruturas, o Benfica apelou à generosidade dos seus milhares de sócios e adeptos para construir o Estádio da Luz. A “campanha do cimento” ficou histórica e uma das marcas de água do “ser benfiquista”. Foi com o suor, o sangue e as lágrimas dos benfiquistas que se construiu o Estádio da Luz. É isto a mística. “E pluribus unum” – Todos por Um.
E claro, houve Eusébio. Mas, note-se, muito antes já havia Benfica, muito depois continuou a haver Benfica. Não é tanto pelas vitórias que o menino negro, pobre, simples e tímido, de Mafalala, que um dia chegou a Lisboa para representar o Benfica, se tornou um símbolo, um ícone, uma estátua.
Foi porque Eusébio, como Coluna, empunhou o testemunho transmitido por Guilherme Espírito Santo, super-atleta da década de 30: a multiculturalidade, a multietnicidade, a união entre povos e raças. O Benfica era isso, é isso, será sempre isso.
Quando a escravatura ainda era uma forte realidade no maior país do Mundo, os Estados Unidos da América, o Benfica tinha como seus porta-estandartes 3 negros: Guilherme Espírito Santo, Eusébio da Silva Ferreira, Mário Coluna.
Quando o Estado Novo reagia em força às alterações à ordem estabelecida nas antigas colónias, o Benfica e os benfiquistas reviam-se na classe, no humanismo, na simpatia, de um angolano, Guilherme Espírito Santo, e de um moçambicano, Eusébio da Silva Ferreira, e colocava a braçadeira de capitão e a autoridade de líder no braço e na personalidade de um outro moçambicano, Mário Coluna – e foram eles que levaram o nome do Benfica por esse Mundo fora.
Em quase 105 anos de existência, há altos e baixos, há sombras e luzes, há festa e melancolia. A quem gosta de aferir instituições pelo currículo das vitórias, não basta responder  que o Manchester United esteve 25 anos sem ser campeão, o Real Madrid 17 e o AC Milan 18, porque nenhum destes clubes pode almejar ser o Benfica e tudo o que o Benfica representa.
Nem o Santos de Pélé, nem o Vasco da Gama, dos portugueses do Rio, podem algum dia almejar atingir essa dimensão. Porque a todos faltou um desígnio imaterial no dia da fundação. Porque todos são meros “clubes de futebol”. E os que dizem que não são só isso, como o Barcelona, têm uma agenda política muito própria e muito sua.
O Benfica está muito acima. O Benfica não é um clube de futebol porque é a emanação real e transcendental de uma ideia, de um sentimento, de uma alma: português na origem, universalista nos princípios, humanista na ética.
Quando uma criança de rua passeia descalça na Costa do Sol, em Maputo, só com a camisola do Benfica vestida; quando um restaurante na Cidade da Praia, em Cabo Verde, emoldura as suas paredes com fotos das equipas do Benfica; quando um moleque do Rio se lembra do histórico Santos-Benfica (5-3), em Paris, porque o pai lhe falou de um negrinho com 19 anos chamado Eusébio, igual a Pélé e Didi; quando em Luanda ou no Huambo se paravam os tiros para ouvir os relatos do Benfica; quando, às terças, uma fila imensa de gente espera a sua vez à porta da biblioteca municipal de Maputo para ler “A Bola” e a crónica do jogo do Benfica; quando em Newark o Dia de Portugal é festejado com bandeiras do Benfica e de Portugal; quando mais de 40 mil portugueses enchem o Stade de France, em Paris, para apoiarem o Benfica, naquela que foi a maior presença de sempre de adeptos de uma equipa visitante num jogo das competições europeias; quando, em Genebra, um emigrante português celebra a vitória da selecção circulando pelas artérias da cidade com bandeiras do Benfica a esvoaçar nas janelas  – de que é que estamos a falar?
De algo, porventura, sei lá, tão ou mais forte que a bandeira e o hino. Algo que não acabou, nem morreu, nem foi esquecido, com a descolonização e a independência das ex-colónias. Algo que os emigrantes levam consigo para o Brasil, para França, para a Suiça, para os Estados Unidos. Esse nome, Benfica.
ps1Por razões pessoais, este texto é publicado hoje e não na segunda-feira, o meu dia normal de postagem, tendo trocado com o António Souza-Cardozo, em cujas mãos ficará melhor a análise da vitória do Benfica no Funchal, domingo à noite, e consequente ascensão ao 1º lugar. Acredito na vitória, acredito no 1º lugar, acredito que vamos ser campeões. Porque o Benfica vive das vitórias e para as vitórias. Campeão, sempre campeão.

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